segunda-feira, 30 de maio de 2016

Oito mentiras sobre o Impeachement que você provavelmente já ouviu

                                                  
                                                             
(FELIPPE HERMES - BLOG SPOTNIKS)
   Apenas seis meses separam o início do processo de impeachment e o afastamento de Dilma Rousseff da presidência. Durante este período, foram mais de 50 horas de debates com amplo direito de defesa, em uma comissão que ouviu mais de uma dezena de especialistas em Direito e Finanças Públicas, teve seu rito e constitucionalidade validados pelo Supremo Tribunal Federal, sua motivação validada pelo Tribunal de Contas da União e, após a conclusão, ainda permitiu os devidos questionamentos na Justiça. Um processo amplamente apoiado por entidades civis e validado por todas as instituições competentes, como a Ordem dos Advogados do Brasil. Ainda assim, para o governo trata-se de um claro golpe, um atentado à democracia. E os motivos usados para sustentar esta tese são os mais variados e fantasiosos possíveis.
    Nestes seis meses em que o processo se desenrolou, as investigações da Polícia Federal e do Ministério Público avançaram a ponto de descobrir que a campanha que elegeu Dilma Rousseff e seu vice foram financiadas por meio de extorsão e caixa dois. Segundo a confissão de empresas como a construtora Andrade Gutierrez, obras como a hidrelétrica de Belo Monte renderam cerca de R$ 45 milhões em propinas. Nada disso, no entanto, é parte do processo – o que levará Dilma a perder o seu mandato talvez seja encarado, aos olhos da história, como o mais banal dos motivos: as pedaladas fiscais. De fato, atrasar repasses a bancos públicos e realizar empréstimos disfarçados passaria desapercebido em meio a uma dívida que chegou em fevereiro a R$ 4 trilhões, não fosse o fato que a crise econômica nos mostra de forma escancarada os efeitos de um governo que frauda suas contas para viver além das suas possibilidades.
    Daremos as costas para 2016 celebrando o terceiro ano consecutivo de déficit primário – e uma dívida de R$ 4,5 trilhões ao final do ano, ou 73% do PIB. Um PIB que encolherá apenas em 2016 cerca de 3,86%, segundo o Banco Central, levando nossa renda a chegar em 2021 no mesmo valor de 2010. Ao final deste processo, Dilma perderá seu emprego e todos os brasileiros quase 11 anos de desenvolvimento econômico – e isso para não citar as cerca de 10 milhões de pessoas que terão retornado à pobreza até 2018.
    Se a crise não é motivo relevante para cassar um presidente (e constitucionalmente, jamais deve ser), ela é uma amostra clara daquilo que ocorre quando passamos a tratar fraudes como as realizadas durante a gestão de Dilma como algo menor. Defender que pedaladas não são um ato criminoso, mas um mero desvio administrativo, é possivelmente o mais esdrúxulo dos mitos criados em torno do impeachment. Mas não é o único. Abaixo, listamos outros 7 deles.

1. “Se Dilma cair, 17 governadores também devem cair, pois cometeram pedaladas.”

    O termo contabilidade criativa tornou-se famoso no Brasil durante a gestão de Arno Augustin, secretário do Tesouro que por anos atuou ao lado de Guido Mantega, então ministro da Fazenda. Segundo inúmeros economistas na época, e formadores de opinião, Arno e Guido estariam melhorando as contas públicas do país por meio da realização de manobras contábeis. Quer um exemplo prático? Vamos lá. Imagine que o governo toma R$ 450 bilhões emprestados, colocando estes recursos no BNDES e passando a considerá-los como crédito. Ou seja: na teoria a dívida pública líquida não aumentou (entrou um passivo e outro ativo em igual valor). Some-se a isto o fato de que o BNDES passou a gerar mais dividendos e – boom! – segundo a contabilidade do governo as coisas ficaram ainda melhores ao se endividar.
    Manobras como essas são muito mais comuns do que parecem. Governos estaduais as praticam a todo instante. Deixa-se de pagar um fornecedor para que o valor das despesas não prejudique o orçamento do mês, ou mesmo do ano, e, segundo a contabilidade, tudo melhora.
Mas esse não é o problema aqui. Ao tentar confundir contabilidade criativa (em resumo, o ato de realizar manobras contábeis para dar uma sensação de melhora nas contas públicas) com as pedaladas/fraudes fiscais (o ato de realizar empréstimos ilegais junto a bancos de propriedade do próprio governo, o que fere a Lei de Responsabilidade Fiscal), busca-se banalizar o termo, como fez o ex-presidente Lula ao dizer que “todos praticam caixa dois” durante o mensalão de 2005.
   O erro neste caso não está apenas no fato de se considerar que o fato de 17 governadores cometerem crimes anularia o crime da presidente, mas em uma confusão sobre até onde vai a Lei de Responsabilidade Fiscal. Criada em 2000, a LRF aponta como crime o ato realizado junto a instituições financeiras de propriedade dos governos (no caso dos bancos estaduais, à exceção de três, todos os estados privatizaram os seus nos últimos 20 anos, não podendo, portanto, cometer este crime).
   Como você deve supor, no entanto, a contabilidade adotada pelos governos estaduais está longe de ser irretocável. A questão é: se não há crime de responsabilidade na realização de atrocidades contábeis, o mais correto no caso seria indicar mudanças na LRF ou maior rigor por parte de Tribunais de Conta dos estados. Jamais eximir Dilma de sua culpa. Ou sair contando mentiras estapafúrdias por aí, não é mesmo?

2. “Dilma pedalou para pagar programas sociais.”

    Numa amostra de como variam os argumentos anti-impeachment, a ideia de que Dilma pedalou para pagar programas sociais foi adotado logo após o governo admitir, enfim, as pedaladas e anunciar que iria pagá-las até o final do ano (o que foi feito com recursos de uma conta do Banco Central que, segundo alguns economistas, deveria ter outra finalidade).
    Os mais de R$ 72 bilhões pagos pelo governo aos bancos públicos, segundo o argumento acima, foram destinados a cobrir rombos com a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil no pagamento de programas sociais, como o Bolsa Família, o Seguro Desemprego e o Seguro Safra. Dilma teria fraudado as contas não para maquiar a situação e reeleger-se presidente, mas para garantir que os mais pobres tivessem acesso aos recursos de que necessitavam.
    A nova versão da história, no entanto, não durou um mês. Como apontou o Contas Abertas, os recursos das pedaladas cobriram em sua grande maioria os repasses ao BNDES, banco conhecido por receber recursos que custam 14,25% ao governo – que decide então emprestá-los a grandes empresas por juros de 6,5%. A diferença neste caso deveria ser paga pelo governo. Vinha, no entanto, sendo paga pelo banco, o que configurou a pedalada.
Por volta de 30% dos recursos das pedaladas até 2014 destinavam-se ao BNDES, enquanto 15% tinham como objetivo o pagamento do Bolsa Família.

3. “O TCU nunca julgou pedaladas como crime de responsabilidade.”

    O parecer do Tribunal de Contas da União reconhecendo as pedaladas/fraudes fiscais como crime de responsabilidade foi unânime. Pela segunda vez em quase 80 anos, o tribunal não aprovou as contas de um governo. Ainda assim, segundo muitos, o caso foi inédito e atípico, uma vez que em outras ocasiões o mesmo tribunal não reconheceu as pedaladas como crime.
Para entender a decisão do TCU, porém, é preciso distinguir as pedaladas/fraudes daquilo que sempre ocorreu nas contas do governo em bancos públicos. Como mostra o relatório do ministro Augusto Nardes, ao contrário do que ocorreu entre 2000 e 2013, a diferença entre o que foi pago pelos bancos e o valor pago pelo governo aos bancos, deixou de ser um mero erro de cálculo para se tornar uma prática comum, com efeitos contábeis relevantes.
    Em resumo, Lula e FHC erraram nos valores repassados aos bancos públicos (para mais ou para menos), por preverem de forma errônea quantas pessoas iriam sacar tais recursos nos bancos. Dilma, por outro lado, deixou de repassar recursos aos bancos para manter recursos em caixa e desta forma melhorar a própria contabilidade pública
Definitivamente, como o gráfico acima mostra, não se trata de apenas um erro de cálculo.

4. “Querem derrubar uma presidente democraticamente eleita.”

    Um pedido a cada três meses durante uma década. A média de pedidos de impeachment realizados apenas pelo partido do governo, o PT, durante os anos 90, enquanto era oposição, não deixa dúvida de que o processo de impeachment, apesar de constitucional, deve ser sempre utilizado com cautela.
Dentre os 50 pedidos realizados por Lula, José Dirceu e demais dirigentes petistas, encontram-se todos os presidentes eleitos e os que tomaram posse desde a redemocratização, de José Sarney a Fernando Henrique Cardoso.
   Regulado pela lei 1079/50 na Constituição Federal, o impeachment é um instrumento mundialmente consagrado para garantir a remoção de governantes que se excederam no cargo, cometendo os crimes citados na respectiva lei. Por se tratar de um argumento previsto em lei, portanto, é pré-requisito para o seu cumprimento que o presidente em questão tenha sido eleito pelas leis do país – ou seja, tenha sido democraticamente eleito.
E embora soe estranho ter que afirmar algo tão evidente, nenhum ditador, por mais benevolente que seja, permite a seus cidadãos realizarem um processo de impeachment. Apenas presidentes democraticamente eleitos podem ser democraticamente destituídos. Pela lei. Como Dilma está sendo.

5. “Temer não pode assumir pois não foi eleito.”

    Pode parecer absurdo, mas durante boa parte do período republicano brasileiro, presidente e vice-presidente foram eleitos de forma independente. Por décadas, foi possível eleger um presidente de um partido e um vice do partido de oposição.
Os inerentes conflitos gerados por esta prática levaram a adoção de um modelo mundialmente referenciado, em que a candidatura presidencial ocorre por meio de chapas, com presidente e vice indicados (ambos podendo ser de partidos distintos, uma vez que estes partidos concordem em formar uma coalização de governo).
    Michel Temer, portanto, recebeu os exatos 54 milhões de votos de Dilma Rousseff, dos mesmos eleitores que democraticamente elegeram Dilma. A presença de Temer, presidente do partido de maior base no Congresso Nacional, e responsável pela maior base de prefeituras e filiados do país, não apenas contribuiu com um nome para a chapa, mas com recursos, tempo de televisão e militantes, sem os quais a própria candidatura de Dilma Rousseff estaria provavelmente condenada a um retumbante fracasso. Temer, portanto, não apenas foi eleito democraticamente com Dilma Rousseff, mas seu partido é possivelmente o maior responsável por elegê-la (em especial, garantindo vitórias em estados como o Rio de Janeiro, onde a vitória de Dilma deu-se por larga vantagem graças ao seu apoio).
    Talvez você, eleitor da presidente, não tenha se tocado disso, mas havia a imagem de Michel Temer na urna eletrônica. E ela não estava ali a toa: uma das poucas atribuições constitucionais do vice presidente de um país é substituir um presidente em caso de morte/doença, renúncia ou impeachment. Ou seja: foi você quem referendou esse cenário.

6. “Eduardo Cunha será o vice de Michel Temer.”

    Passadas as tentativas de deslegitimar o motivo do impeachment e o sucessor natural de Dilma, os boatos começaram a se espalhar a respeito do próprio governo Temer. Senadores da República passaram a atacar o governo Temer pela sua suposta escolha de ministros, por prever acabar com programas sociais (os mesmos que sofreram cortes no governo Dilma Rousseff), e pelos mais variados motivos.
Até então, presidente da Câmara dos Deputados e, portanto, o responsável por acatar o pedido de impeachment de Dilma, Eduardo Cunha foi acusado de estar mancomunado com Michel Temer para que ambos derrubassem Dilma e desta forma Temer se tornasse presidente, com Cunha como vice.
O boato, porém, não possui fundamento na própria Constituição, que diz que os presidentes da Câmara e do Senado não podem suceder um presidente ou vice democraticamente eleito, mas apenas substituí-los em caso de viagem ao exterior
   Segundo a mesma Constituição Federal, portanto, mesmo que Michel Temer sofra um impeachment, nem Eduardo Cunha (atualmente afastado), nem Renan Calheiros assumiriam o cargo, pois dentro de 90 dias deveriam ser convocadas novas eleições. No período, o presidente seria apontado por eleição indireta da Câmara.
Na prática, ninguém será vice de Temer.

7. “O impeachment não é legitimo pois foi instaurado e aprovado por um Congresso corrupto.”

    Muito além de pretender anular o crime alegando que os atos da presidente são semelhantes aos dos demais governantes, os mitos criados em torno do impeachment enfocam também o fato de que, como é de conhecimento geral, nosso Congresso é corrupto. Cerca de 60% dos deputados que julgaram Dilma na comissão do impeachment, por exemplo, possuem processos.
O fato, no entanto, em nada diz respeito ao julgamento da própria presidente. Seus aliados, como os senadores Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias, ou o senador Renan Calheiros, também possuem processos ou são investigados. Não há, portanto, uma distinção entre aqueles que possuem processo e os que não possuem, baseado no fato de apoiarem ou não Dilma.
    Ao contrário do que ocorre em uma corte de Justiça, os deputados não podem cassar Dilma ou lhe imputar qualquer pena (o processo de cassação cabe apenas aos senadores). Cabe aos deputados apenas determinar a abertura do processo de impeachment.
   Há pouco mais de duas décadas, o processo de impeachment contra Collor, apoiado por nomes como Jair Bolsonaro, José Serra, Aécio Neves, Aloizio Mercadante e Jandira Feghali, não deixou de ser reverenciado pela história, ainda que o Congresso fosse composto por uma horda de bandidos (acredite, a corrupção não é novidade no Brasil).

8. “Tirar a Dilma não irá acabar com a corrupção.”

   Insistindo novamente na ideia de que os crimes são comuns e que, portanto, não devemos julgar certas transgressões, inúmeros são os que alegam que o processo de impeachment não terá o fim pretendido pelas manifestações, notoriamente contra a corrupção.
Pode parecer absurdo, mas a alegação possui uma segunda intenção: a de sancionar que apenas uma reforma política poderá combater a corrupção. E quem irá lidar esse processo reformista? Acertou quem apostou na base do governo.
   A ideia de reforma política é, já há algum tempo, um ponto central para o Partido dos Trabalhadores e organizações de classe ligadas a ele. Acabar com o financiamento privado de campanha, por exemplo, é ironicamente uma proposta com grande apelo dentro do partido que mais recebeu recursos de empresas privadas para campanhas presidenciais na história. Como as investigações da Polícia Federal mostram, no entanto, boa parte das doações recebidas pelo PT, e de seus partidos periféricos, são ilegais. Ou seja: a mudança na lei aqui apenas favoreceria quem possui maiores condições de extorquir as empresas (e, veja só, ninguém consegue fazer isso melhor do que quem já está no poder).
  Exemplos como este mostram como reformar a política segundo a vontade de quem “está ganhando” não é algo tão simples – e também não acabará com a corrupção.
A ideia pouco objetiva de entregar o futuro da política aos mesmos que hoje acusamos de corrupção é tentadora, uma vez que é público e notório que as regras atuais não impedem a corrupção. Como isto será feito, porém, é exatamente o que define como as coisas irão mudar. Entregaremos poder aos políticos na esperança de que eles terminem com menos poder? Pouco provável.
   Mais improvável ainda é ver triunfar movimentos sem causas objetivas. O impeachment de Dilma, uma causa mais do que objetiva, demonstra como a República Presidencialista, ao contrário daquilo que se pensava há duas décadas, é instável e, por vezes, danosa às instituições de um país com tantos problemas como o nosso. Como consequência, a criação de um modelo parlamentarista, onde por obrigação a autoridade máxima do país governa por maioria no congresso – e sua deposição é simples e rápida, com a convocação de novas eleições – parece ser a solução mais inteligente a curto prazo.
  A queda de Dilma, como você deve imaginar, não acabará com a corrupção. Mantê-la no governo, porém, tornará as fraudes fiscais aceitáveis, pondo em risco novamente a própria gestão pública e a economia do país. 
  Em suma, Dilma deve cair pelo que fez. Não é matéria da lei do impeachment propor a solução de todos os problemas do país. Nem no Brasil, nem em qualquer outro lugar do mundo. O impeachment serve para penalizar quem cometeu crimes contra a administração pública. É assim que a lei funciona em países que respeitam suas instituições.
  E é por cometer crimes contra a administração pública que Dilma está caindo. Sem desculpas esfarrapadas, sem mentiras. sem ilusão. Em suma: sem golpe.

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