(FELIPPE HERMES - BLOG SPOTNIKS)
Apenas seis meses separam o
início do processo de impeachment e o afastamento de Dilma Rousseff
da presidência. Durante este período, foram mais de 50 horas de
debates com amplo direito de defesa, em uma comissão que ouviu mais
de uma dezena de especialistas em Direito e Finanças Públicas, teve
seu rito e constitucionalidade validados pelo Supremo Tribunal
Federal, sua motivação validada pelo Tribunal de Contas da União
e, após a conclusão, ainda permitiu os devidos questionamentos na
Justiça. Um processo amplamente apoiado por entidades civis e
validado por todas as instituições competentes, como a Ordem dos
Advogados do Brasil. Ainda assim, para o governo trata-se de um claro
golpe, um atentado à democracia. E os motivos usados para sustentar
esta tese são os mais variados e fantasiosos possíveis.
Nestes seis meses em que o processo se desenrolou, as investigações
da Polícia Federal e do Ministério Público avançaram a ponto de
descobrir que a campanha que elegeu Dilma Rousseff e seu vice foram
financiadas por meio de extorsão e caixa dois. Segundo a confissão
de empresas como a construtora Andrade Gutierrez, obras como a
hidrelétrica de Belo Monte renderam cerca de R$
45 milhões em propinas.
Nada disso, no entanto, é parte do processo – o que levará
Dilma a perder o seu mandato talvez seja encarado, aos olhos da
história, como o mais banal dos motivos: as pedaladas fiscais.
De fato, atrasar repasses a bancos públicos e realizar empréstimos
disfarçados passaria desapercebido em meio a uma dívida que chegou
em fevereiro a R$
4 trilhões, não fosse o
fato que a crise econômica nos mostra de forma escancarada os
efeitos de um governo que frauda suas contas para viver além das
suas possibilidades.
Daremos as costas para 2016 celebrando o terceiro ano
consecutivo de déficit primário – e uma dívida de R$ 4,5
trilhões ao final do ano, ou 73% do PIB. Um PIB que encolherá
apenas em 2016 cerca de 3,86%,
segundo o Banco Central, levando
nossa renda a chegar em 2021 no mesmo valor de 2010.
Ao final deste processo, Dilma perderá seu emprego e todos os
brasileiros quase 11 anos de desenvolvimento econômico – e isso
para não citar as cerca de 10
milhões de pessoas que
terão retornado à pobreza até 2018.
Se a crise não é motivo relevante para cassar um presidente (e
constitucionalmente, jamais deve ser), ela é uma amostra clara
daquilo que ocorre quando passamos a tratar fraudes como as
realizadas durante a gestão de Dilma como algo menor. Defender
que pedaladas não são um ato criminoso, mas um mero desvio
administrativo, é possivelmente o mais esdrúxulo dos mitos criados
em torno do impeachment. Mas não é o único. Abaixo, listamos
outros 7 deles.
1. “Se Dilma cair, 17 governadores também devem cair, pois cometeram pedaladas.”
O termo contabilidade criativa
tornou-se famoso no Brasil durante a gestão de Arno Augustin,
secretário do Tesouro que por anos atuou ao lado de Guido Mantega,
então ministro da Fazenda. Segundo inúmeros economistas na época,
e formadores de opinião, Arno e Guido estariam melhorando as contas
públicas do país por meio da realização de manobras
contábeis. Quer um exemplo
prático? Vamos lá. Imagine que o governo toma R$
450 bilhões emprestados,
colocando estes recursos no BNDES e passando a considerá-los como
crédito. Ou seja: na teoria a dívida pública líquida não
aumentou (entrou um passivo e outro ativo em igual valor). Some-se
a isto o fato de que o BNDES passou a gerar mais dividendos e –
boom!
– segundo a contabilidade do governo as coisas ficaram ainda
melhores ao se endividar.
Manobras como essas são muito mais comuns do que parecem. Governos
estaduais as praticam a todo instante. Deixa-se de pagar um
fornecedor para que o valor das despesas não prejudique o orçamento
do mês, ou mesmo do ano, e, segundo a contabilidade, tudo melhora.
Mas esse não
é o problema aqui. Ao tentar confundir contabilidade
criativa (em resumo, o ato de
realizar manobras contábeis para dar uma sensação de melhora nas
contas públicas) com as pedaladas/fraudes
fiscais (o ato de realizar
empréstimos ilegais junto a bancos de propriedade do próprio
governo, o
que fere a Lei de
Responsabilidade Fiscal), busca-se banalizar o termo, como fez o
ex-presidente Lula ao dizer que “todos praticam caixa dois”
durante o mensalão de 2005.
O
erro neste caso não está apenas no fato de se considerar que o fato
de 17 governadores cometerem crimes anularia o crime da presidente,
mas em uma confusão sobre até onde vai a Lei de Responsabilidade
Fiscal. Criada em 2000, a LRF aponta como crime o ato realizado junto
a instituições financeiras de propriedade dos governos (no caso dos
bancos estaduais, à exceção de três, todos os estados
privatizaram os seus nos últimos 20 anos, não podendo, portanto,
cometer este crime).
Como você deve supor, no entanto, a contabilidade adotada pelos
governos estaduais está longe de ser irretocável. A questão
é: se não há crime de responsabilidade na realização
de atrocidades contábeis, o mais correto no caso seria indicar
mudanças na LRF ou maior rigor por parte de Tribunais de Conta dos
estados. Jamais eximir Dilma de sua culpa. Ou sair contando
mentiras estapafúrdias por aí, não é mesmo?
2. “Dilma pedalou para pagar programas sociais.”
Numa amostra de como variam os argumentos anti-impeachment, a ideia
de que Dilma pedalou para pagar programas sociais foi adotado logo
após o governo admitir, enfim, as pedaladas e anunciar que iria
pagá-las até o final do ano (o que foi feito com recursos de
uma conta do Banco Central que, segundo alguns economistas, deveria
ter outra finalidade).
Os mais de R$ 72 bilhões pagos pelo governo aos bancos públicos,
segundo o argumento acima, foram destinados a cobrir rombos com a
Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil no pagamento de
programas sociais, como o Bolsa Família, o Seguro Desemprego e o
Seguro Safra. Dilma teria fraudado as contas não para maquiar a
situação e reeleger-se presidente, mas para garantir que os mais
pobres tivessem acesso aos recursos de que necessitavam.
A nova versão da história, no entanto, não durou um mês. Como
apontou o Contas
Abertas, os recursos das
pedaladas cobriram em sua grande maioria os repasses ao BNDES, banco
conhecido por receber recursos que custam 14,25% ao governo – que
decide então emprestá-los a grandes empresas por juros de
6,5%. A diferença neste caso deveria ser paga pelo governo. Vinha,
no entanto, sendo paga pelo banco, o que configurou a pedalada.
Por volta de
30% dos recursos das pedaladas até 2014 destinavam-se ao BNDES,
enquanto 15% tinham como objetivo o pagamento do Bolsa Família.
3. “O TCU nunca julgou pedaladas como crime de responsabilidade.”
O parecer do Tribunal de Contas da União reconhecendo as
pedaladas/fraudes fiscais
como crime de responsabilidade foi unânime. Pela segunda vez em
quase 80 anos, o tribunal não aprovou as contas de um governo. Ainda
assim, segundo muitos, o caso foi inédito e atípico, uma vez que em
outras ocasiões o mesmo tribunal não reconheceu as pedaladas como
crime.
Para entender
a decisão do TCU, porém, é preciso distinguir as pedaladas/fraudes
daquilo que sempre ocorreu nas contas do governo em bancos públicos.
Como mostra o relatório do ministro Augusto Nardes, ao contrário do
que ocorreu entre 2000 e 2013, a diferença entre o que foi pago
pelos bancos e o valor pago pelo governo aos bancos, deixou de ser um
mero erro de cálculo para se tornar uma prática comum, com efeitos
contábeis relevantes.
Em resumo, Lula e FHC erraram nos valores repassados aos bancos
públicos (para mais ou para menos), por preverem de forma errônea
quantas pessoas iriam sacar tais recursos nos bancos. Dilma, por
outro lado, deixou de repassar recursos aos bancos para manter
recursos em caixa e desta
forma melhorar a própria contabilidade pública
Definitivamente,
como o gráfico acima mostra, não se trata de apenas um erro de
cálculo.
4. “Querem derrubar uma presidente democraticamente eleita.”
Um pedido a cada três meses durante uma década. A média de pedidos
de impeachment realizados apenas pelo partido do governo, o PT,
durante os anos 90, enquanto era oposição, não deixa dúvida de
que o processo de impeachment, apesar de constitucional, deve ser
sempre utilizado com cautela.
Dentre os 50
pedidos realizados por Lula, José Dirceu e demais dirigentes
petistas, encontram-se todos os presidentes eleitos e os que tomaram
posse desde a redemocratização, de José Sarney a Fernando Henrique
Cardoso.
Regulado
pela lei 1079/50 na Constituição Federal, o impeachment é um
instrumento mundialmente consagrado para garantir a remoção de
governantes que se excederam no cargo, cometendo os crimes citados na
respectiva lei. Por se tratar de um argumento previsto em lei,
portanto, é pré-requisito para o seu cumprimento que o presidente
em questão tenha sido eleito pelas leis do país – ou seja, tenha
sido democraticamente eleito.
E embora soe
estranho ter que afirmar algo tão evidente, nenhum ditador, por mais
benevolente que seja, permite a seus cidadãos realizarem um processo
de impeachment. Apenas presidentes democraticamente eleitos podem ser
democraticamente destituídos. Pela lei. Como Dilma está sendo.
5. “Temer não pode assumir pois não foi eleito.”
Pode parecer absurdo, mas durante boa parte do período republicano
brasileiro, presidente e vice-presidente foram eleitos de forma
independente. Por décadas, foi possível eleger um presidente de um
partido e um vice do partido de oposição.
Os inerentes
conflitos gerados por esta prática levaram a adoção de um modelo
mundialmente referenciado, em que a candidatura presidencial ocorre
por meio de chapas, com presidente e vice indicados (ambos podendo
ser de partidos distintos, uma vez que estes partidos concordem em
formar uma coalização de governo).
Michel Temer, portanto, recebeu os exatos 54 milhões de votos de
Dilma Rousseff, dos mesmos eleitores que democraticamente elegeram
Dilma. A presença de Temer, presidente do partido de maior base no
Congresso Nacional, e responsável pela maior base de prefeituras e
filiados do país, não apenas contribuiu com um nome para a chapa,
mas com recursos, tempo de televisão e militantes, sem os quais a
própria candidatura de Dilma Rousseff estaria provavelmente
condenada a um retumbante fracasso. Temer, portanto, não apenas foi
eleito democraticamente com Dilma Rousseff, mas seu partido é
possivelmente o maior responsável por elegê-la (em especial,
garantindo vitórias em estados como o Rio de Janeiro, onde a vitória
de Dilma deu-se por larga vantagem graças ao seu apoio).
Talvez você, eleitor da presidente, não tenha se tocado disso, mas
havia a imagem de Michel Temer na urna eletrônica. E ela não estava
ali a toa: uma das poucas atribuições constitucionais do vice
presidente de um país é substituir um presidente em caso de
morte/doença, renúncia ou impeachment. Ou seja: foi você
quem referendou esse cenário.
6. “Eduardo Cunha será o vice de Michel Temer.”
Passadas as tentativas de deslegitimar o motivo do impeachment e o
sucessor natural de Dilma, os boatos começaram a se espalhar a
respeito do próprio governo Temer. Senadores da República passaram
a atacar o governo Temer pela sua suposta escolha de ministros, por
prever acabar com programas sociais (os mesmos que sofreram cortes no
governo Dilma Rousseff), e pelos mais variados motivos.
Até então,
presidente da Câmara dos Deputados e, portanto, o responsável por
acatar o pedido de impeachment de Dilma, Eduardo Cunha foi acusado de
estar mancomunado com Michel Temer para que ambos derrubassem Dilma e
desta forma Temer se tornasse presidente, com Cunha como vice.
O boato,
porém, não possui fundamento na própria Constituição, que diz
que os presidentes da Câmara e do Senado não podem suceder um
presidente ou vice democraticamente eleito, mas apenas substituí-los
em caso de viagem ao exterior
Segundo
a mesma Constituição Federal, portanto, mesmo que Michel Temer
sofra um impeachment, nem Eduardo Cunha (atualmente afastado), nem
Renan Calheiros assumiriam o cargo, pois dentro de 90 dias deveriam
ser convocadas novas eleições. No período, o presidente seria
apontado por eleição indireta da Câmara.
Na prática,
ninguém
será vice de Temer.
7. “O impeachment não é legitimo pois foi instaurado e aprovado por um Congresso corrupto.”
Muito além de pretender anular o crime alegando que os atos da
presidente são semelhantes aos dos demais governantes, os mitos
criados em torno do impeachment enfocam também o fato de que, como é
de conhecimento geral, nosso Congresso é corrupto. Cerca de 60% dos
deputados que julgaram Dilma na comissão do impeachment, por
exemplo, possuem processos.
O fato, no
entanto, em nada diz respeito ao julgamento da própria presidente.
Seus aliados, como os senadores Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias,
ou o senador Renan Calheiros, também possuem processos ou são
investigados. Não há, portanto, uma distinção entre aqueles que
possuem processo e os que não possuem, baseado no fato de apoiarem
ou não Dilma.
Ao contrário do que ocorre em uma corte de Justiça, os deputados
não podem cassar Dilma ou lhe imputar qualquer pena (o processo de
cassação cabe apenas aos senadores). Cabe aos deputados apenas
determinar a abertura do processo de impeachment.
Há pouco mais de duas décadas, o processo de impeachment
contra Collor, apoiado por nomes como Jair Bolsonaro, José Serra,
Aécio Neves, Aloizio Mercadante e Jandira Feghali, não deixou de
ser reverenciado pela história, ainda que o Congresso fosse
composto por uma horda
de bandidos (acredite, a
corrupção não é novidade no Brasil).
8. “Tirar a Dilma não irá acabar com a corrupção.”
Insistindo novamente na ideia de que os crimes são comuns e que,
portanto, não devemos julgar certas transgressões, inúmeros são
os que alegam que o processo de impeachment não terá o fim
pretendido pelas manifestações, notoriamente contra a corrupção.
Pode parecer
absurdo, mas a alegação possui uma segunda intenção: a de
sancionar que apenas uma reforma política poderá combater a
corrupção. E quem irá lidar esse processo reformista? Acertou quem
apostou na base do governo.
A
ideia de reforma política é, já há algum tempo, um ponto central
para o Partido dos Trabalhadores e organizações de classe ligadas a
ele. Acabar com o financiamento privado de campanha, por exemplo, é
ironicamente uma proposta com grande apelo dentro do partido que mais
recebeu recursos de empresas privadas para campanhas presidenciais na
história. Como as investigações da Polícia Federal mostram, no
entanto, boa parte das doações recebidas pelo PT, e de seus
partidos periféricos, são ilegais. Ou seja: a mudança na lei aqui
apenas favoreceria quem possui maiores condições de extorquir as
empresas (e, veja só, ninguém consegue fazer isso melhor do que
quem já está no poder).
Exemplos como este mostram como reformar a política segundo a
vontade de quem “está ganhando” não é algo tão simples – e
também não acabará com a corrupção.
A ideia pouco
objetiva de entregar o futuro da política aos mesmos que hoje
acusamos de corrupção é tentadora, uma vez que é público e
notório que as regras atuais não impedem a corrupção. Como isto será
feito, porém, é exatamente o que define como as coisas irão mudar.
Entregaremos poder aos políticos na esperança de que eles terminem
com menos poder? Pouco provável.
Mais improvável ainda é ver triunfar movimentos sem causas
objetivas. O impeachment de Dilma, uma causa mais do que objetiva,
demonstra como a República Presidencialista, ao contrário daquilo
que se pensava há duas décadas, é instável e, por vezes, danosa
às instituições de um país com tantos problemas como o nosso.
Como consequência, a criação de um modelo parlamentarista, onde
por obrigação a autoridade máxima do país governa por
maioria no congresso – e sua deposição é simples e rápida, com
a convocação de novas eleições – parece ser a solução
mais inteligente a curto prazo.
A queda
de Dilma, como você deve imaginar, não acabará com a
corrupção. Mantê-la no governo, porém, tornará as fraudes
fiscais aceitáveis, pondo em risco novamente a própria gestão
pública e a economia do país.
Em suma, Dilma deve cair pelo que fez. Não é matéria da lei do
impeachment propor a solução de todos os problemas do país. Nem no
Brasil, nem em qualquer outro lugar do mundo. O impeachment serve
para penalizar quem cometeu crimes contra a administração
pública. É assim que a lei funciona em países que respeitam
suas instituições.
E é
por cometer crimes contra a administração pública que Dilma está
caindo. Sem desculpas esfarrapadas, sem mentiras. sem ilusão.
Em suma: sem golpe.
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