quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Erudição necessária (II)

Aqui vai minha contribuição para tão auspicioso projeto:


Língua e dialetos na Idade Média

Os problemas lingüísticos na Idade Média são complexos, colocando o historiador diante de dificuldades metodológicas de primeira ordem se ele tenta aduzir conclusões raciais e institucionais de provas obtidas através do estudo da linguagem. Na Europa ocidental, o latim era a língua universal da Igreja e, de um modo substancial, da administração permanente e do governo em suas instruções escritas; ser letrado significava ser letrado em latim. A latinidade da Idade Média foi modificada e tornou-se mais flexível no decorrer dos séculos, graças sobretudo aos gramáticos do período carolíngio, embora as estruturas clássicas essenciais fossem preservadas. A pena dos melhores estilistas, como Jean de Salisbury no século XII, suporta comparação com tudo o que tenha sido escrito pelos melhores prosadores do mundo antigo. O grego, reconhecido desde o final do século VI como a língua oficial do Império, desempenhou uma
função semelhante em Bizâncio.
Os vernáculos continuaram florescendo, sobretudo nos dinâmicos séculos XII e XIII, quando trovadores, poetas, pregadores e professores se dedicaram cada vez mais não só à composição mas também ao registro escrito de suas obras. “O que é o francês, senão um latim mal falado?”, perguntou um escritor anglo-saxão no começo do século XI; mas por volta de 1200, a partir do tronco latino básico, já estavam completas as formas padronizadas dos ancestrais das modernas línguas românicas ou neolatinas: o francês, o provençal, o catalão, o galaicoportuguês,o castelhano, os dialetos hispânicos, os dialetos italianos, sobretudo o toscano, e uma série de outros.
Desenvolvimentos análogos ocorreram no mundo de fala germânica. A Inglaterra foi um caso único em seu elaborado uso do vernáculo escrito nos últimos tempos anglo-saxônicos, mas nas terras continentais, o pleno florescimento da literatura deu-se na virada do século XIII, especialmente no alto-alemão da Alemanha meridional. A Escandinávia conheceu seu momento de apogeu literário com as sagas islandesas do século XIII. Elas teriam grande efeito na padronização dos vernáculos. O mundo de fala céltica passou por fenômenos semelhantes, e os poetas líricos galeses produziram uma obra de prestígio europeu. Entre os povos de fala eslava, houve uma concentração maciça da liturgia eclesiástica no eslavônio, mas as próprias línguas passaram por uma diferenciação profunda que resultou na criação do russo moderno, tcheco, polonês e as línguas eslavas meridionais. O mapa lingüístico da Europa moderna adquiriu
lentamente forma na segunda metade da Idade Média, com algumas das fronteiras lingüísticas mostrando ser de uma surpreendente flexibilidade e mais ou menos permanentes depois do século XII. O tronco lingüístico predominante era indo-europeu, mas houve algumas sobrevivências de uma época muito remota, como no caso dos bascos e dos albaneses, e algumas intrusões, como no grupo fino-úgrico que, de longínquas origens asiáticas, veio a produzir com o tempo na Europa as línguas distantemente aparentadas do finlandês e do húngaro. Na Romênia, a antiga província romana da Dácia, persistiu uma língua de base latina, embora maciçamente transformada por uma mistura de elementos gregos, eslavos e búlgaros. Essa multiplicidade de crescimento e experiência lingüísticos faz com que o contínuo vigor do latim e do grego seja ainda mais notável, embora analogias possam ser rapidamente traçadas com o arábico no mundo muçulmano da Idade Média e, mais adiante, com o inglês do século XX.

Literatura

Predominantemente destinada à recitação pública coletiva,muito mais do que à leitura privada individual, a literatura medieval vernácula floresceu, graças ao mecenato aristocrático, em cortes
seculares. Dada a natureza aleatória da preservação de manuscritos laicos, é surpreedentemente elevado o volume de obras que sobreviveram, embora isso represente, sem dúvida alguma, apenas uma pequena proporção do que foi realmente escrito e ainda menos do que foi copiado. Os vernáculos, por muito tempo considerados parentes pobres do latim (a língua internacional tradicional do saber e da cultura), passou a ser, não obstante, o veículo para as maiores
realizações imaginativas da Idade Média. A literatura secular em latim ficou largamente confinada a assuntos derivados, direta ou indiretamente, de modelos clássicos. Exceções notáveis são os versos irreverentes do Arquipoeta, a poesia amorosa dos Carmina Burana (século XIII) e a altamente popular pseudo-Historia Regum Britanniae (1136), de Godofredo de Monmouth, a qual inaugurou a voga literária do rei Artur.
A literatura vernácula apoiou-se naturalmente em fontes escritas, mas ao mesmo tempo combinou elementos díspares da cultura popular,incluindo mito, folclore e outras tradições orais. Sua livre mistura de tons é característica: a combinação do popular e do erudito, do recreativo e do didático, do sobrenatural e do concreto, produziu uma literatura ricamente diversa e inovadora, dotada de amplos atrativos e permitindo diferentes níveis de apreciação e interpretação.
Durante toda a Idade Média, o veículo preferido de expressão literária foi mais a poesia do que a prosa. Uma vasta gama de gêneros está representada, entre os quais o romance narrativo, precursor da novelística moderna, ocupa uma posição destacada. O anonimato era a norma — pelo menos no período inicial — e os autores criavam variações em cima das convenções aceitas, mais do que buscavam a originalidade. A atenção era freqüentemente focalizada num indivíduo
que funcionava como a consubstanciação de um ethos feudal ou cavaleiresco, ou como o agente de conflito humano. A religião formou um background onipresente, com o amor — usualmente numa forma ritualizada — fornecendo um outro tema de destaque. O realismo social não era uma preocupação importante numa literatura que, acima de tudo, era celebrante e idealizante, mas interesses sociais e morais, dentro de uma moldura altamente simbólica, estavam entre os motivos mais freqüentemente repetidos. A caracterização e a análise psicológica raras vezes eram explícitas, a ambigüidade e a ironia eram sistematicamente exploradas. Os melhores dos autores citados a seguir mostram uma gama impressionantemente vasta de erudição e
considerável autoconsciência artística.
A França é geralmente considerada a inspiradora de todas as novas tendências literárias da Europa medieval, mas sua preeminência não é anterior ao século XII. O mundo germânico reivindica as mais antigas sobrevivências: o Beowulf em inglês arcaico, que se pensa datar do século VIII, poderosa evocação das lutas de um guerreiro solitário contra os poderes do Mal, e o fragmentário Hildebrandslied em alto-alemão arcaico. Essa tradição épica prossegue, no final do século XII, com o Nibelungenlied em alto-alemão médio, e com as Eddas em norueguês arcaico e as sagas em prosa da Islândia. A épica francesa medieval faz sua aparição no final do século XI com sua obra-prima, a Chanson de Roland, de longe o melhor de cerca de uma centena de
poemas épicos franceses ainda existentes, em termos de estilo oral, estrutura narrativa e retrato de lealdades conflitantes numa sociedade guerreira. Em contraste, o espanhol Cantar de Mio Cid, do início do século XIII, parece menos popular na inspiração, menos heróico e inspirador no tom.
A lenda céltica de Tristão e Isolda está representada no francês do século XII somente por sobrevivências fragmentárias, com Thomas, um anglo-normando, fornecendo a fonte para a brilhante reelaboração de Gottfried von Strassburg para o alemão. O outro mestre da narrativa alto-alemã média, Wolfram von Eschenbach, também se inspirou para o seu Parzival em modelos franceses, mais especificamente no pioneiro e mais perfeito expoente do romance
medieval, Chrétien de Troyes. O corpus de cinco romances octossilábicos de Chrétien, compostos em 1165-90 (dos quais Yvain e o inacabado Conte du Graal são os mais conhecidos), reflete preocupações sociais, em sua justaposição de realismo contemporâneo e lenda arturiana, e questiona o ethos cavaleiresco predominante. Na esteira de Chrétien, a psicologia do amor é explorada ainda mais a fundo na alegoria de Guilherme de Lorris, Roman de Ia Rose (c. 1225-75), cuja continuação por Jean de Meung alcança uma enciclopédica exuberância. A tradição do amor cortesão prossegue no original e enigmático Libro de Buen Amor , de Juan Ruiz.
O culto do amor originou-se nas tecnicamente elaboradas e, por vezes, herméticas canções dos trovadores provençais do final do século XI e século XII. Foi ainda mais estimulado pelo alemão Minnesänger,sendo Walther von der Vogelweide (c. 1170-1230) o seu mais notável representante, enquanto que as galaico-portuguesas cantigas de amigo refletem uma faceta mais popular da variada produção da poesia lírica medieval.
A literatura no médio-inglês, retardada em seu desenvolvimento pelas conseqüências da Conquista Normanda, floresce na segunda metade do século XIV com a alegoria social erudita de Lanland, Piers Plowman, com o poeta de Gawain e, em especial, com Chaucer, que apresenta em Canterbury Tales uma vívida galeria de tipos do seu tempo, num refinado estilo poético. O teatro medieval estava preponderantemente limitado aos autos da Paixão, também chamados autos de devoção ou mistérios, de que talvez sejam os mais duradouros exemplos os ciclos de mistérios em inglês medievo.
Um lugar de honra entre os autores medievais é tradicionalmente — e corretamente — reservado para Dante (1265-1321), cuja Divina Comédia alia a grandiosidade do tema à beleza poética, apresentando uma cosmovisão cristã num dolce stil nuovo que eleva a eloqüência
vernácula a novas alturas de expressividade. O Decameron de Boccaccio marca a maioridade da prosa como veículo literário, enquanto que Petrarca (1304-74), cujos sonetos de amor seriam largamente imitados, anuncia o advento do humanismo e o começo de uma nova era. Na década de 1460, na França, Villon continuou usando os modos tradicionais de expressão, em que o convincente realismo social se revela através do verniz autobiográfico.

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