Antes de transcrever o artigo propriamente dito, faço um esclarecimento: A pedido de um de nossos leitores, eu estava elaborando uma postagem para falar sobre a pandemia que assombra nosso futuro e das panacéias potencialmente perigosas que surgiram para combatê-la. O que estava me incomodando era o grande problema em escrever algo que não fosse demasiado enfadonho (extenso e excessivamente técnico) e nem sucinto a ponto de deixar dúvidas para o leigo. Foi aí que me deparei com o artigo abaixo, magistralmente redigido pela já conhecida Dra. Natalia Pasternak e pelo jornalista Carlos Orsi, ambos membros do excelente blog Questão de Ciência. Após lê-lo,não tive dúvida: era exatamente o que procurava escrever e não conseguia tanto por falta de tempo ( e paciência) quanto pelo excesso de material.
Sem mais delongas, ei-lo:
" Temos
recebido muitas mensagens com dúvidas legítimas, informações
equivocadas e provocações sobre o material que estamos publicando a
respeito do uso da cloroquina (CQ) e hidroxicloroquina (HCQ) no
tratamento da COVID-19. Aqui, um compilado das questões mais recorrentes
– e nossas respostas.
Vamos lá:
Sobre a ação do medicamento
1) Afirmação:
A CQ e HCQ atuam impedindo a entrada de vírus na célula, alterando o pH
do endossomo, que é o veículo usado pela partícula viral. Por isso,
devem funcionar para COVID-19.
Provavelmente falso
O caminho de invasão da
célula via endossomo existe, mas não é o único. Existe uma entrada por
fusão de membrana – quando o vírus dispensa a “carona” do endossomo –
para a qual o pH é irrelevante. Estudos mostram que essa entrada é a
mais utilizada pelo SARS-CoV2. Isso pode explicar por que os testes
sempre dão certo em cultura de células, mas nunca em animais e humanos.
As células do trato respiratório têm características de membrana que
facilitam a fusão, enquanto as células usadas para os testes de
laboratório só oferecem ao vírus a via de endossomo.
2) Afirmação: Esses remédios já foram usados com sucesso para tratamento de outras viroses.
Falso !
A HCQ e CQ atuam com
sucesso no tratamento de malária, que é causada por um protozoário, e
não um vírus. E atuam também com sucesso em doenças autoimunes como
lúpus e artrite reumatoide. Já foram testadas – e fracassaram—no
tratamento de aids, dengue, influenza, chikungunya, ebola e SARS. Nos casos de
chikungunya e ebola, esses medicamentos fizeram mal, aumentando o número
de vírus e agravando os sintomas de ambas as doenças, em animais.
3) Afirmação:
A CQ e HCQ apresentam ação imunomodulatória e, portanto, podem ser
úteis na fase grave da doença, onde temos uma reação imune
descontrolada.
Provavelmente falso
O mecanismo
imunomodulatório existe, e é o que torna esses medicamentos úteis em
doenças autoimunes, mas a aplicabilidade disso à COVID-19 é, na melhor
das hipóteses, um chute. O uso de CQ e HCQ em pacientes graves, até
agora, não parece ter apresentado resultados favoráveis. O efeito
imunomodulador pode demorar semanas para se manifestar. Os protocolos
para pacientes graves de COVID-19 utilizam HCQ por cinco dias. Pode ser
que este prazo não seja suficiente para que o efeito imunomodulador faça
diferença. Por outro lado, esse efeito pode ser indesejado em fases
iniciais da doença, exatamente por deprimir o sistema imune, o que pode
acabar favorecendo a replicação do vírus.
4) Afirmação: Os medicamentos apresentam ação anti-inflamatória, que pode ser útil na fase grave da COVID-19.
Verdadeiro, mas irrelevante
O efeito existe, e pode
ser útil, mas há diversos outros medicamentos no mercado com a mesma
função, e menos efeitos colaterais. Não existe necessidade de usar CQ e
HCQ como anti-inflamatórios, dadas as alternativas.
5) Afirmação: Não funciona dar só a HCQ, precisa dar a azitromicina junto.
Falso !
O uso da azitromicina
em associação com a HCQ começou baseado no primeiro estudo do
pesquisador francês Didier Raoult, que usou o antibiótico para tratar
infecções bacterianas secundárias, mas achou ter visto melhora em seis
pacientes que usaram essa combinação. Ele chamou esse resultado de “100%
de cura”. Só esqueceu de contar sobre os seis pacientes que também
tomaram essa combinação e pioraram: três foram para UTI, e um morreu. O
artigo científico que descreve os resultados de Raoult foi considerado
de baixa qualidade até pelos responsáveis da revista que o publicou.
6) Afirmação:
A combinação HCQ + azitromicina funciona porque, além do efeito
antiviral da HCQ, o antimalárico atua numa estrutura interna da célula, o
ribossomo, impedindo a produção de proteínas de que o vírus precisa, e a
azitromicina na mitocôndria, deixando o vírus sem energia para se
multiplicar.
Absurdo !!
Esses conceitos
absurdamente errados, que deveriam matar de vergonha qualquer
segundanista de faculdade de Biologia, foram apresentados ao público
brasileiro pelo virologista Paolo Zanotto, e depois propagados pela
médica Nise Yamaguchi. Os proponentes mostram total ignorância de
biologia celular. A HCQ não atua no ribossomo da célula. A azitromicina,
como outros antibióticos do mesmo tipo, atua em ribossomos de
bactérias, mas não de células do corpo humano. A mitocôndria apresenta,
de fato, ribossomos similares aos da uma bactéria, mas está bem
protegida dentro da célula. E caso o antibiótico realmente conseguisse
fazer estrago nas células humanas, quando usado nas mesmas concentrações
em que é usado para matar bactérias, não seria um antibiótico e sim um
veneno potente.
Efeitos colaterais:
1) Afirmação:
Esses remédios são usados há anos para outras doenças, tem gente que
usa a vida inteira, e de repente vocês aí estão dizendo que faz mal.
Fora de contexto
Os efeitos
colaterais são conhecidos para malária, lúpus e artrite reumatoide,
justamente porque os medicamentos passaram por testes clínicos. Sabemos a
dose adequada, a frequência de uso e quais efeitos acompanhar. Efeitos
comuns incluem arritmia cardíaca, perda de visão, perda de audição e
problemas no fígado. Pacientes que fazem uso contínuo são acompanhados, e
se houver qualquer alteração crítica, a medicação é trocada. Além
disso, a dose utilizada por pacientes autoimunes é menor do que a dose
empregada atualmente para COVID-19.
Os efeitos desses
remédios para pessoas acometidas por uma doença infecciosa grave nunca
foram estudados. O organismo de uma pessoa em estado grave de COVID-19
não é o mesmo de alguém infectado por malária, ou em tratamento para
lúpus. A interação com outros medicamentos comuns no tratamento de
suporte da COVID-19 nunca foi estudada. Diabéticos, por exemplo, são
grupo de risco para COVID-19, e podem estar fazendo uso de metformina.
Estudos em camundongos mostraram que administrar CQ com metformina matou
30% dos animais. A administração conjunta com azitromicina nunca foi
testada. A azitromicina também provoca arritmia cardíaca, além de
diarreia, que por sua vez leva à desidratação.
Assim, estaríamos dando dois medicamentos que atacam o coração para
pacientes com o coração já fragilizado, uma vez que o próprio vírus
também causa arritmia. Estamos empilhando fatores de risco ao combinar
essas medicações nesses pacientes.
2) Afirmação: o mundo inteiro está usando e curando pessoas e vocês aqui falando de efeitos colaterais!
Falso
Não há nenhum sinal de
que a CQ e HCQ estejam funcionando no resto do mundo, para além de
relatos esparsos ou bravatas de médicos e políticos que anunciam curas
sem apresentar dados. Mas há relatos bem embasados e estudos que
demonstram efeitos colaterais graves, como paradas cardíacas e
arritmias. Reportagem do Le Monde, na França, citando autoridades
sanitárias do país, contabilizou 56 eventos cardíacos graves, sete
paradas cardíacas (quatro mortes), trinta e sete casos de prolongamento
de QT (uma falha no ritmo do coração), e de casos de arritmia com
síncope. Hospitais na Franca e Suécia já estão parando de usar esses
medicamentos por causa destes efeitos colaterais sérios.
3) Pergunta: Vocês preferem deixar morrer do que dar um remédio não testado?
Absurdo !!
Se o remédio tem grande
chance de acelerar a morte, e nenhuma comprovação de benefício, “deixar
de dar” não é deixar morrer, é evitar que o paciente seja jogado numa
roleta russa. O paciente não está abandonado à própria sorte, está
recebendo tratamento e medicamentos de suporte, e a maior parte deles se
recupera. Fica a contra-pergunta: você daria um remédio que você não
sabe se ajuda, mas que tem uma chance bem concreta de matar o paciente
do coração?
4) Afirmação: Se fosse sua mãe ali, morrendo de falta de ar como um peixe fora dágua, vocês iam correr pra dar o remédio!
Falso e ridículo !
Numa situação de
desespero como a descrita na pergunta, muitas pessoas talvez até
aceitassem óleo de cobra com pó de pirlimpimpim e ovo de pata. O
tratamento aí é para a angústia da família, não para a condição do
paciente. Mas se, como no caso da HCQ/CQ, não houvesse nenhuma razão
para achar que o remédio vai fazer bem, nós, particularmente, não
usaríamos. A prioridade é cuidar do doente de modo respeitoso e
responsável, não usá-lo como bucha de canhão, só para aliviar o
desconforto emocional dos parentes ou dos profissionais de saúde.
Sobre os protocolos
1) Afirmação: Não está funcionando porque estão dando para pacientes graves e o certo é dar no começo da doença.
Falso
Vejam, nas respostas
anteriores, os possíveis efeitos do remédio. Poderia funcionar na fase
grave pela ação imunomodulatória e anti-inflamatória, mas esses efeitos
não foram realmente observados e nem estudados contra a COVID-19, são só
possibilidades teóricas. Para funcionar na fase inicial, teria que ter
ação antiviral e impedir a replicação do vírus. Isso é pouco provável:
CQ e HCQ já foram testadas para outras viroses como AIDS, SARS, febre
chikungunya, ebola, dengue e influenza. Nunca funcionaram. Para ebola e
chikungunya, pioraram a doença, aumentando a replicação do vírus.
De resto, ficar mudando
a alegação cada vez que os fatos contradizem o que se deseja provar –
uma hora a HCQ é a salvação dos doentes graves; quando isso não
funciona, passamos para os moderados; e quando isso não funciona de
novo, vamos para quem está nos estágios iniciais da doença – soa mais
como aglomeração desesperada de desculpas esfarrapadas do que pesquisa
científica séria.
2) Afirmação: O Prevent Senior curou centenas de pessoas com o protocolo de uso precoce, nas fases iniciais.
Improvável
A única fonte dessa
informação é o próprio Prevent. Nenhum dado confiável, verificado por
partes desinteressadas em fazer marketing para o grupo, foi divulgado
até agora, mas seguimos aguardando. Até termos uma publicação
científica, tudo o que sabemos é que a rede Prevent Senior também
disponibilizou o medicamento para pacientes com suspeita de COVID-19, por atendimento remoto e entrega do remédio em domicílio.
Em muitos casos, o diagnóstico nem foi confirmado. Temos aí dois
problemas sérios: não sabemos se quem tomou o remédio e melhorou estava
realmente doente com COVID-19, e mesmo que estivesse, como a taxa de
recuperação da doença, sem tratamento nenhum, é muito alta – 90% se
recuperam sem internação – não sabemos se a HCQ contribuiu de fato na
melhora desses pacientes.
3) Afirmação: Todos os hospitais estão usando esse protocolo precoce, até o Albert Einstein.
Falso
O hospital Albert Einstein já negou essa afirmação em público. Eles fazem apenas uso em pacientes graves, na UTI, e ainda não divulgaram resultados.
Conspirações
1) Afirmação: Ciência não é tudo! A intuição e a experiência pessoal dos médicos é mais importante.
Completamente falso
Médicos são seres
humanos, tão vulneráveis a vieses ideológicos e a embarcar em falsas
esperanças quanto o restante de nós. O método científico é, exatamente, a
ferramenta que temos para reunir uma grande quantidade de experiências
de modo lógico e ver, uma vez eliminados os vieses a as ilusões, o que
resta. Ele nem sempre funciona como deveria, mas descartá-lo é como
optar por um tapete voador só porque aviões, às vezes, caem. E, de
qualquer modo, há muitos médicos relatando que a HCQ não deu certo
contra a COVID-19 (um exemplo aqui e outros, aqui e aqui).
2) Afirmação: Vocês são esquerdopatas que querem esconder a cura da COVID-19 só para prejudicar o Bolsonaro!
Falso e risível
Abstraindo o fato
de que o atual presidente da República não precisa da ajuda de ninguém
para se prejudicar, em uma pandemia de escala mundial, não haveria como
“esconder a cura”: se algum remédio – HCQ, HCQ+AZ, ou qualquer outro –
realmente estivesse já em posição de fazer uma diferença definitiva,
estaríamos vendo isso acontecer em alguma parte do mundo. Pelo
contrário, mesmo países que, de início, abraçaram a HCQ, como EUA e
França, não viram qualquer benefício.
3) Afirmação: Quando provarem que o remédio funciona, vocês vão ficar com a cara no chão.
Falso !
Se evidências
robustas mostrarem que o medicamento funciona, e que o benefício é maior
do que o risco, ficaremos muito felizes. A ciência não é uma disputa
entre artigos de fé: reflete justamente a habilidade de mudar de ideia
diante da evolução das evidências.
'Mas eu quero mesmo assim!' (a.k.a. 'Mimimi Never Ends')
Afirmação: Conheço pessoas que tomaram e melhoraram por causa da cloroquina.
Insustentável
Você conhece pessoas
que tomaram o remédio e depois se recuperaram da doença. Elas podem ter
atribuído a recuperação ao remédio, mas não temos como saber se estão
certas. Em casos leves, o remédio pode não ter feito a menor diferença, e
a pessoa teria se recuperado de qualquer maneira. Em casos graves, a
mesma coisa. E o paciente grave estará recebendo diversos outros
medicamentos, como corticoides, anti-inflamatórios e anticoagulantes.
Não há razão para achar que, nesse cenário, a cloroquina tenha feito
alguma diferença crucial. Pelo contrário, pode até ter atrapalhado. A
única maneira de saber se a HCQ e azitromicina tiveram efeito é comparar
um grupo que a utilizou com um grupo que não o fez.
Afirmação: Se você não quer não tome, eu tomo o que eu quiser.
Parcialmente verdadeiro
O médico
pode prescrever e você pode tomar. Isso se chama uso off-label da
medicação, o uso para uma finalidade diferente daquela para qual o
remédio foi aprovado. Isso é decidido pelo médico. Mas quando se fala em
incluir um novo medicamento num guia de procedimentos médicos aprovado
pelo governo, ou de uso no SUS, aí já não se trata mais de decisão
individual. Estamos falando de produção em massa, gasto de dinheiro
público e pressão legal e institucional sobre profissionais de saúde. E
estamos falando de dar um remédio que pode ser perigoso, e não trazer
benefício nenhum, para milhões de pessoas. O hospital que detectou
problemas cardíacos na França e parou de usar tinha capacidade para
fazer eletrocardiogramas em todos os pacientes, mais de uma vez ao dia. O
Brasil não tem condições de fazer isso na rede pública.
Afirmação: Estamos em guerra, então vale tudo!
Falso
Se estamos em guerra ( e
essa é uma metáfora ruim, por vários motivos), o que menos precisamos é
de fogo amigo. Um remédio que pode matar pacientes e que não traz
benefícios claros não ajuda em nada. Já cometemos esse erro no surto de
ebola: Usamos de tudo, não testamos nada direito e, com isso, não
ajudamos ninguém e até hoje é impossível afirmar se os remédios
testados, no desespero, funcionam ou não contra essa doença."
Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência
Artigo original: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/2020/04/10/tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-hidroxicloroquina