por
Rodrigo da Silva
Fascismo é provavelmente um dos conceitos mais repetidos e pouco compreendidos
da história dos dicionários políticos. Veja você mesmo. Quantas vezes
você ouviu essa expressão nos últimos meses? Eu poderia apostar que
não seria possível listar nos dedos de uma mão. E isso para não
falar da possibilidade que você mesmo tenha sido acusado disso. Eu
vivo lendo isso por aqui. Quando não como crítica aos textos que
escrevo, como resposta aos comentários dos próprios leitores. Todos
devidamente catalogados como fascistas. A questão é: alguém saberia realmente explicar o que exatamente é o fascismo? Ou será que todo mundo repete essa palavra sem ter a mais remota
noção do que ela significa?
De fato, parece inegável que o termo alcançou o século atual servindo
para basicamente qualquer coisa. Fulano é fascista
porque sai para protestar contra o governo com uma camiseta com as
cores do país. Beltrano joga no mesmo time dele porque torce o nariz
para as ideias de esquerda. Sicrano também segue esse negócio
porque vota num cara que eu não curto. Esse é o grande problema aqui:
pouca gente sabe exatamente o que diz quando usa essa expressão.
Fascismo é dos termos mais imprecisos popularizados na política.
Segundo o Dictionnaire historique des fascismes et du nazisme “não existe nenhuma definição universalmente aceita do fenômeno
fascista, nenhum consenso, por menor que seja, quando à sua
abrangência, às suas origens ideológicas ou às modalidades de ação que
o caracterizam”. Stanley G. Payne, um dos mais reconhecidos
historiadores do fascismo no mundo, foi outro a atestar esse fenômeno.
Ele diz que o “fascismo permanece sendo, provavelmente, o mais vago
dos termos políticos mais importantes”. E não conta nenhuma novidade.
Já em 1946, George Orwell condenava o fascismo a uma palavra “quase
inteiramente sem sentido” e que “qualquer inglês aceitaria ‘valentão’
como sinônimo” dela.
Por certo, fascismo
acabou se tornando uma espécie de insulto político a qualquer figura
opositora aos ideais de esquerda. Assim, de forma vaga, da maneira
mais banal possível. Você pode perfeitamente virar um fascista
apenas por não corroborar os discursos de um político de um
determinado partido mais progressista, daquele coletivo revolucionário
da sua universidade ou de algumas das pautas mais caras a essa turma
toda. Pra muita gente, ou você abraça toda estética, e os jargões, e a
luta de um grupo ideológico muito particular, ou você está condenado a
desempenhar para sempre o papel de fascista.
A questão é que isso tudo evidentemente não faz o menor sentido. E
ainda assim a ideia é facilmente disseminada. Basta reparar nas
manchetes. Nos noticiários ela não cansa de marcar presença. Sergio Moro, por exemplo, é um clássico fascista. E não apenas ele, a Lava Jato é irredutivelmente um braço do fascismo. Cássio Cunha Lima
idem.
Bolsonaro? Fortaleceu a “direita fascista”. O MBL
também. Todos fascistas. Mil vezes fascistas.
Ainda que vago, no entanto, mesmo sem um aparato ideológico abrangente
ou pensadores influentes, há alguns elementos escancarados a respeito da
natureza do fascismo. Todos, e isso faz total sentido, ignorados por
aqueles que mais utilizam essa expressão. Abaixo, 4 coisas que você
precisa saber antes de sair por aí acusando os outros usando esse nome
em vão.
#1. É antiliberal
Grave bem. Essa é a primeira coisa que você
precisa saber antes de sair por aí acusando alguém usando
essa expressão: o maior inimigo do fascismo é o liberalismo. Essa
era a opinião de Mussolini, o grande líder totalitário italiano.
“O fascismo é definitivamente e absolutamente oposto às doutrinas do liberalismo, tanto na esfera econômica quanto na política.”
Para ele, o liberalismo era uma espécie
de “religião desconhecida” que precisava ser combatida.
Mussolini era desses que acreditava que o século
dezenove havia sido o grande reinado do liberalismo no
mundo e que o século vinte seria o “século de fascismo”. Não
por acaso, ele resumiu toda doutrina fascista numa regra muito clara,
que virou quase um bordão de tão precisa:
“Tudo para o Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado.”
Reparou? Essa é a essência do tal Estado totalitário: é tudo
nele e nada fora dele. Ou seja, o fascismo é a ideia que todas as
ações humanas devem satisfações a uma organização central. O
Estado deve dirigir uma economia corporativista, controlando cada
movimento do mercado, ao mesmo tempo em que impõe claros
limites às liberdades individuais. Em resumo, esse é o exato
oposto do que defendeu toda literatura liberal ao longo dos últimos
trezentos anos. Isso também é muito próximo daquilo que os socialistas
instituíram em diferentes regimes ao redor do mundo no último
século.
Moeller van den Bruck, o ideólogo nazista que serviu como forte
influência para o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores
Alemães, captou o sentimento da juventude alemã antes da ascensão
de Hitler. Era genuinamente antiliberal.
“O liberalismo é uma filosofia de vida à qual a juventude alemã volta hoje as costas com nojo, cólera e um desprezo especial, pois não há nada mais exótico, mais repugnante e mais contrário à sua filosofia. A juventude alemã dos nossos dias reconhece no liberalismo o arqui-inimigo.”
Para ele, a ascensão do fascismo nos mais diversos cantos da
Europa era facilmente explicada:
“Todas as forças antiliberais estão se unindo contra tudo que é liberal.”
No artigo “A redescoberta do liberalismo”, o alemão Eduard
Heimann, um dos líderes do socialismo religioso alemão, era outro a
destacar o ódio dos fascistas pelos liberais:
“Hitler jamais pretendeu representar o verdadeiro liberalismo. O liberalismo tem a honra de ser a doutrina mais odiada por Hitler.”
Passado tanto tempo, é exatamente por isso que soa tão estúpido
quando liberais são acusados de fascistas. Na verdade é
o contrário. O fascismo é uma espécie de religião do Estado. É a
crença que o Estado deve assumir totalmente a responsabilidade por cada
aspecto da vida humana em detrimento do individualismo. O Estado deve
gerir o nosso bem-estar e cuidar da nossa saúde. E não apenas isso. Deve
também impor uma uniformidade de pensamento – leia-se:
instaurar uma ditadura do pensamento único, onde as expressões não
são livres, construídas a partir da boa vontade de uma liderança
política.
Na prática, a construção de uma sociedade fascista é inteiramente
calcada pelo antiliberalismo.
#2. É trabalhista
Poucos regimes foram tão revolucionários na defesa
dos direitos trabalhistas quanto o fascismo. Não por acaso, a nossa
própria legislação na área, criada no auge do Estado Novo,
por Getúlio Vargas, tem como base um documento
italiano do final da década de vinte, a Carta del
Lavoro, onde o Partido Nacional Fascista definiu os
fundamentos das relações de trabalho. Até hoje, aliás, todas essas
determinações não apenas permanecem organizando a vida econômica do país
em corporações, com sindicatos patronais e trabalhadores tutelados
pelo Estado, como são defendidas em grande parte por militantes de
esquerda.
E a CLT não foi o único documento a seguir esse
princípio. A própria Constituição Federal de 1937 tem
no artigo 138 uma tradução idêntica à declaração III da Carta
del Lavoro. E o que ela prevê? A unicidade sindical sob tutela do
Estado, as contribuições compulsórias e os contratos coletivos de
trabalho, mecanismos que de forma intacta sobreviveram
à Constituição de 1988.
Foi dessa maneira que o fascismo mudou a cara do trabalhismo no
último século – abraçando o sindicalismo revolucionário e dando ao
Estado o papel de tutor das relações laborais, fiscalizando patrões,
empregados e determinado cada aspecto da vida do trabalho. Quer dizer,
nunca houve no fascismo italiano o interesse em abolir completamente a
propriedade privada, como definia a utopia soviética. Os fascistas
ousavam dominá-la através de corporações intimamente ligadas ao
Estado. Em 1935, os sindicatos fascistas tinham mais de 4
milhões de filiados. Nada parecido havia sido testemunhado
proporcionalmente em nenhum outro canto do mundo até então. A
Itália era um grande feudo sindicalista.
Do outro lado do Atlântico, essa é a base do
trabalhismo tupiniquim: uma cópia escrachada do fascismo italiano.
Não apenas no que diz respeito à perpetuação de uma cultura sindical
(e nunca é demais lembrar que há mais de 15 mil sindicatos no
Brasil), como no fato dessas corporações serem tão próximas
ao Estado (de abril de 2008 a abril de 2015, o governo federal
repassou mais de R$ 1 bilhão para as centrais sindicais).
Boa parte dos nossos sindicalistas, não obstante, com o dedo em riste
acusam seus opositores de fascistas. Nada mais contraditório.
#3. É populista
Há algo inegável a respeito das ideologias:
fascistas e populistas de esquerda nasceram como uma espécie de
irmãos Karamazov dos dicionários políticos. E não sem motivo.
Em geral, tanto o primeiro grupo quanto o segundo construiu
suas plataformas ideológicas no último século a partir do
aumento do gasto público, da criação de políticas econômicas
equivocadas justificadas para atender as massas, da propagação da
ideia que o livre mercado é um mal a ser combatido, da
figura centrada num grande líder carismático, do uso das estruturas do
Estado para a construção da propaganda oficial, do combate à
globalização como proteção à economia nacional, da crença no partido
como um instrumento inquestionável de criação de prosperidade e justiça
social, da luta contra um inimigo em comum (os norte americanos, o
comércio internacional, os judeus), da construção de um discurso que una
o grande líder ao “povo” e condene todas as figuras contrárias
ao partido como “antipovo”, da perseguição à propriedade privada, da
manipulação dos números oficiais, da descrença em escândalos de
corrupção do governo.
Isso tudo está em Getúlio, Hitler ou Mussolini. Mas também está em
Chávez, Perón e Fidel.
Há evidentes diferenças entre fascistas e populistas
de esquerda, certamente. Ainda assim, não é um equívoco apostar que
há mais coisas que os aproxima do que os afasta.
#4. É autoritário
Sabe aquela imagem estereotipada do grande líder
totalitário concentrando todo poder possível
nas mãos para dar cabo ao seu plano psicopata de destruir
completamente o mundo? Sinto dizer, mas longe dos desenhos animados e
dos pastelões de Hollywood, ela é falsa. Em geral, a mesma noção
altruísta que teoricamente move políticos dos mais diversos credos
ideológicos também inspira diferentes líderes totalitários: todas
as suas ações políticas são justificadas a partir de uma hipotética luta
pela transformação do mundo vigente, do combate às mazelas
históricas, da crença que as suas ideias são naturalmente superiores e
benéficas ao maior número de pessoas.
E é justamente graças a esse entendimento que seu plano político é
infalível na construção de uma sociedade mais justa e estável, e que
seus opositores representam uma ameaça ao bem estar geral da
população, que líderes totalitários e seus simpatizantes usualmente
criam algumas das ditaduras mais perversas que a humanidade já
testemunhou – dentre as quais uma muito peculiar, ainda tão em voga nos
dias atuais: a do pensamento único.
Via de regra, todos aqueles que buscam construir o paraíso na terra
concentrando poder, acabam produzindo catástrofes infernais. E
se a tirania atinge seu ápice na instauração da nova identidade
política, com muita repressão policial, alcança forte poderio também no
campo das ideias. Acreditando defender um mundo moralmente superior,
fascistas – assim como seus irmãos bastardos, os populistas de esquerda
– condenam aquilo que entendem como
pensamento dominante (essencialmente capitalista e
individualista) para dar lugar a um novo reino da opinião e
das condutas pessoais, construídas sobre o mito da juventude como
artífice da história, da total dedicação à comunidade, da camaradagem e
do espírito guerreiro e revolucionário. Em geral, fascistas e populistas
de esquerda não apenas censuram todos aqueles que destoam de suas
crenças, tratados literalmente como politicamente incorretos, como
ameaçam fisicamente e moralmente seus opositores.
Dessa forma, a liberdade de expressão vira um mero
conceito pequeno burguês: a própria palavra é um instrumento do
coletivo, da maioria, do “povo”, e deve ser silenciada quando
utilizada pelos não alinhados ao pensamento único. Não apenas os
veículos de informação que denunciam descasos do partido
são condenados ao descrédito – quando não à censura – como
pensadores de oposição acabam tratados como arqui-inimigos dos
trabalhadores e do bem comum. Sem escapatória, ou você repete o
discurso coletivo, ou você morre abraçado ao riso da estupidez.
Assim, a essa altura do texto, é muito provável que muitos daqueles que
você está acostumado a ver acusando os outros de fascistas, com
expressões autoritárias, dedos em riste e soluções inquestionáveis para
todos os problemas do mundo, quase sempre são eles mesmos os mais
fervorosos praticantes do fascismo – um fascismo velado, cínico e
demagogo, mas não menos autoritário. Escondidos sob o véu
desse autoritarismo do bem, pretensiosamente inclusivo e
justiceiro, os fascistas envergonhados dos dias atuais, como os do
passado, são quase sempre os primeiros a acusar os outros daquilo
que eles mesmos fazem, e justificam seus protestos, suas greves, seus
boicotes e suas vaias, com toda uma insolência muito peculiar,
à incendiária construção de um novo mundo, mais "justo".
Isto posto, não nos resta dúvida que o fascismo
atravessou o século e deixou de ser uma marca restrita aos líderes
totalitários. Por isso, esqueça Hitler, Vargas ou Mussolini. Olhe ao seu
redor. O fascismo é um instrumento da modernidade que concentra sua
luta na construção de um mundo melhor através de ações
estatais muito específicas e irredutíveis que moldam as
particularidades humanas sob a égide do politicamente correto e do
pensamento único.
Lembre-se disso na próxima vez que sair por aí acusando os outros
usando esse nome. Você pode ser o fascista da vez. Você só não sabe
disso ainda.